História de Sergipe

Carta do Padre Inácio de Toloza

Transcreve-se aqui a carta do padre Inácio de Toloza ao padre geral, de 7 de setembro de 1575, cujo tema principal são as missões do padre Gaspar Lourenço, em Sergipe. O texto consta no livro História de Sergipe, do médico, político e historiador sergipano Felisbelo Freire (1858-1916), publicado originalmente em 1891 (download, 19 MB). Republicado pelo MEC, em 1977.

A grande importância desta carta está no registro histórico do início da colonização portuguesa do atual território de Sergipe, iniciado em fevereiro de 1575.

A grafia do texto foi corrigida aqui para a do português atual. A grafia publicada no livro de Freire era do século 19 e deveu-se à bondade do historiador cearense Capistrano de Abreu, segundo o próprio autor. Para se ter uma ideia de como era o português arcaico, veja a Carta de Caminha, que nos mostra que a "tradução" de um manuscrito daquela época, para o português atual, pode ser um grande desafio e o resultado pode conter erros.

Por esta carta, nota-se a coragem com que os jesuítas confiavam suas vidas ao deus em que acreditavam. Tinham imensa fé em sua missão de catequese. Percebe-se também como evitavam grandes conflitos psicológicos e sociais, numa época em que havia tantas atrocidades: atribuíam as más ações ao demônio. Com grande erudição, os jesuítas convenciam muitos índios a fazer o que eles pediam, caso contrário os índios iriam para o inferno. Conflitos surgiam com aldeias que não aceitavam a nova religião.

Toloza também conta como Gaspar Lourenço encontrou uma ligação entre o Dilúvio da Bíblia e a mitologia indígena.

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Agora vou contar a V. P.(*) o que até aqui há sucedido na missão de Gaspar Lourenço.

Vieram do Rio Real muitos índios principais das aldeias comarcãs(**) que estão naquelas partes: quarenta, cinquenta e sessenta léguas desta Cidade [Salvador], todos em grande desejo de levar padres que os ensinassem as coisas de sua salvação e como era gente que antes estava de guerra, sem ter comércio com os brancos, aguardou-se alguns meses para ver se vinham bem movidos e constando claramente que Deus os trazia pareceu serviço de Deus aceitar esta empresa e assim no mês de fevereiro de 75 partiu o padre Gaspar Lourenço (que é grande língua*** entre eles muito afamado) com o irmão João Solonio, a ensinar-lhes as coisas de sua salvação. Enviou também o governador Luiz de Brito(†) um capitão, com alguns homens brancos, com desejo de haver lá alguma povoação. Deixo de contar o sentimento que houve em a aldeia de S. Antonio, quando se despediu dela o padre, porque todos os desta aldeia se puseram em um pranto, sentindo muito apartar-se deles o padre, de suas almas, como diziam; e grandes e pequenos subiram com eles boa parte do caminho e se não se pusera número na gente que havia de levar, quase todos queriam ir com ele, mas não foram mais de vinte. Pelo caminho a ocupação dele padre foi ensinar a doutrina aos índios e brancos que iam em sua companhia.

Pela manhã, antes de começar a jornada, dizendo todos juntos as ladainhas, pedindo a Deus que os desse próspera viagem.

Já à noite no fim de sua jornada, faziam o mesmo. E como todo aquele caminho é despovoado, recolhiam-se em algumas choças que os índios faziam, onde com muita caridade repartiam com a pesca que tomavam e o padre provia também os necessitados. E sempre foram assim e muitas vezes descalços pelas águas que haviam de passar, mas todos foram com grande paz e alegria, até o Rio Real. Em meio do caminho pela nova a um principal, que ia com ele, porque o haviam morto em sua aldeia um filho foi logo ao padre, dizendo já meu filho é morto, por ventura vai ao inferno? O padre respondeu que sim, porque não era batizado a ele com grande tristeza disse chorando: peso-me muito disto; me batizes para ser filho de Deus e não ir ao inferno.

Um principal conta a ele uma historia que eles tem por certa para explicar sua origem. Dizendo que em tempo passado, aconteceu que os seus por não quererem ser bons, se levantou contra eles um principal e os fez guerra, e depois muito ansiado tomou um dardo, e deu com ele em terra e fez que se abrissem as fontes e se apagassem todos e que ele fez uma casa de folhas mui bem tapada aí se defendeu da água; e depois de todos mortos e a água passada, saiu e assim começaram as gerações, que a cousa é muito longa de contar. O que isto disse, acrescentando que por isto estão desunidos e não tem nada porque tudo perdeu com a água. Ouvindo o padre isto e entendendo que tinham alguma noticia do dilúvio, mas corrupta, lhes explicou a verdade, declarando lhes a historia do Gênesis, ate chegar como Noé fez sua maldição a Cam, porque fez burla dele, dizendo que eles descendiam desde Cam e por isto andavam todos apartados de Deus. Folgaram todos muito ouvindo isto e deram desejos de aprender as coisas de Deus.

Chegaram todos com boa disposição ao Rio Real a 28 de fevereiro e deixando o padre o capitão aposentado em lugar apto, passou a visitar uma aldeia de índios, que estava seis léguas dali. Sabendo os da aldeia que vinham, saíram todos com grande alegria a recebê-los, com grande choros, como costumam fazer, trazendo cada um algum presente ao padre, conforme sua pobreza, como farinha, batatas, e cousas semelhantes, e foram hospedados de um principal, com muita caridade, assim ele, como todos os índios que tinham em sua companhia, repartindo-os por todas as casas. Este principal pregava pela aldeia que havia sido causa que se perdesse a gente que em tempo passado fugiu das aldeias, e por isto fazia esta festa ao padre e o abraçando apenas o levou para sua casa. Outro dia pela manhã começou o padre a dar a razão aos principais da aldeia, de sua vinda, dizendo que vinha manifestar-lhes a lei de Deus e ensinar-lhes o caminho de sua salvação e livrá-los da cegueira em que estavam e começou logo a fazer uma maneira de igreja para dizer missa e ensinar-lhes a doutrina, mas era tanta a gente que vinha a visitar o padre, assim daquela aldeia como das outras, que quase todo o dia gastava em trabalhos a consolá-los e assim o dia seguinte se acabou a igreja, onde se disse missa, os ensinaram a doutrina com grande consolo de todos.

Chama-se a Igreja de S. Thomé, o apostolo, e fizeram junto dela casa em que morassem e pudessem ter concerto religioso e de ali a poucos dias levantaram uma cruz de alguns oitenta palmos, mui formosa, e que ficou toda a gente espantada com ver a veneração, com que a haviam levantado. O principal daquela aldeia, quando se viu sem igreja levantou as mãos para o céu, dizendo: bendito Sr. Deus que vejo já em inteira gloria isto é o que desejava. Pesa-me do tempo passado. Logo começou o padre a ensinar-lhe a doutrina pela manhã, a tarde e a noite. Um índio de nossas aldeias ia tangendo a campainha por toda a aldeia e assim acudiam muitos diante da casa, donde o padre os ensinava as coisas de nossa santa fé e o irmão tomou cargo da escola dos moços, que foram a princípio cinquenta e depois chegaram até cem e em breve tempo sabiam as orações e a um que principalmente residiu com os índios, por que para eles principalmente era enviado, acudia também com alguns brancos que estavam de ali a algumas seis léguas, consolando-os com dizer-lhes missa e confessando-os e um dia volvendo para esta aldeia de S. Thomé os consolou Deus Nosso, porque estando em roda dela, ouviram grandes vozes diante da casa onde moravam e era uma moça da escola de S. Sebastião que o padre havia deixado, para que vigiasse pelas casas e que estava ensinando a doutrina aos meninos da aldeia e depois os fazia persignar e santificar por si a cada um, e isto fez todo o tempo que estiveram ausentes, que foram nove dias.

Teve em estes dias muitas visitas dos principais do Rio de São Francisco e de outras partes; todos vinham pedir ao padre que os fosse visitar e fazer igrejas em suas aldeias e o principal de todos foi um índio chamado por estas partes Curubi, do qual todos se temiam, porque em os tempos passados tinha morto alguns brancos e nunca havia podido aceitar sua amizade; este em sabendo que o padre havia chegado àquela aldeia, logo o enviou a visitar por um irmão seu, pedindo-lhe com muita instância que fosse a residir em sua aldeia, e dando conversa ao irmão para que o levasse em uma rede ao que ele não quis ir, que não era bom estar com aquela ruim gente, isto dizia porque de mil almas que havia naquela aldeia de S. Thomé as quinhentas eram escravas, que em tempos passados foram de seus senhores, que estão acolhidos, dizendo que haviam sido soltos. Despedia o padre a este índio dando-lhe esperança que o iria visitar, mas o Curubi não pode descansar, até não trazer o padre com alguma gente de sua aldeia; foi de todos muito bem recebido e diante de todos deitou o padre uma prática por grande espaço, com tanta eloquência e fervor que deitou o índio espantado a não saber que responder... e assim se despediu sem fazer mais palavras. Daqui tomaram ocasião a gente da aldeia a dizer entre si que não havia entrado em a aldeia com boa intenção, sim com desejo de quebrar a cabeça do padre adiante de todos, e havia alguns que estavam esperando; agora será, agora será; mas as obras mostraram que não foi esta sua intenção, sim que ficou tão confundido com a prática do padre e tão atado de pés e mãos, olhando-o e dizia que não podia mais falar e assim se tornou para sua aldeia.

Outro principal enviou em busca do padre um índio; o padre respondeu que então não podia ir; pois envia o irmão de tua companhia. Deu-lhe o padre razão que não se podia fazer. Respondeu o índio; já que não vás, nem envias nada, dá-me uma carta tua para que leve comigo, e assim foi forçado o padre dar-lhe carta para contentá-lo. Este índio pelas aldeias por onde passava ia pregando que ia em busca do padre, porque onde estava nem conheciam quem era, nem sabiam estimar e que alguns tocava Deus o coração para recebê-lo de boa vontade. Outros também em sabendo que ia o padre, desampararam suas aldeias e se foram a morar pela terra dentro e a uns o padre enviou muitos recados dizendo-lhes que não temessem, porque vinha para dar remédio a suas almas; mas com isto mais se endureciam, dizendo que não queriam igreja, sem o que haviam de mostrar aos padres e aos brancos e não só não recebiam os padres mas enviavam recados a outras aldeias que de nenhuma maneira os recebessem, dizendo que as igrejas não eram para filhos de principais, sim para apoucados e baixos e que não era outra coisa senão homem que o padre era, terror do homem, que ele haverá sido causa de todo seu mal, todavia alguns se separando do principal, se vieram a meter com os nossos, que devem ser os que Deus escolheu para bem aventurança.

Alguns batismos fizeram em pessoas, que estavam em extrema necessidade (por que as demais deram ordem que não batizassem, até estar a terra pacifica e elas bem instruídas nas coisas de nossa santa fé) que ficaram disto tão consoladas que todo trabalho que levaram todo caminho lhes parecia nada, vendo já dar remédio a algumas almas que custaram sangue do filho de Deus, que parece, não a guardavam outra coisa senão a ida dos padres para ir a gozar de um criador.

O primeiro batismo foi de uma vida que estava já para expirar e vendo-a um índio tapuia que ia em companhia do padre que apenas sabia falar a língua, veio correndo para onde estava o padre, varrendo a casa onde haviam de morar dizendo-lhe: vem padre, que a vida de fulano está para morrer.

Deixando tudo que tinha entre as mãos, foi logo o padre e batizou-a com a salvação acostumada, e que tornou todos os gentios atônitos, vendo aquilo pôs-lhe o nome de Maria, e daí a pouco foi gozar de seu criador.

O segundo batismo foi de uma velha, que toda vida havia andado entre brancos e nunca tinha sido batizada; visitando o padre a aldeia a achou já a cabo e depois de bem instruída nas coisas de sua salvação a batizou com muito conselho e daí a poucos dias foi gozar de seu criador. O terceiro foi de outra índia mui enferma e estando o padre falando nas coisas de sua salvação, o marido tinha já preparado para o batismo e ela com o grande desejo que tinha de batizar-se, se levantou da rede em que estava muito enferma; batizou-a o padre e daí a poucos dias se foi a gozar de seu criador. Estas foram as premissas do Rio e estas me parecem hão de ser os patronos daquela cristandade. Depois batizou o padre outros quatorze inocentes, por estarem enfermos e temer que morressem sem batismo.

Estando as coisas desta maneira, vendo o demônio tão bons principias na conversão daqueles gentios e que já começavam tirar-lhes as almas da boca, nas quais tantos anos senhoreavam, começou a levantar as tempestades acostumadas para impedir esta obra; usou de diversos meios. O primeiro foi logo a princípio. Antes que o padre partisse para o Rio Real, foram seis índios com suas mulheres da Aldeia de Santo Antonio adiante dele, sem sua licença e alguns índios do Rio Real pouco afeiçoados a igreja, mataram, comeram e tomaram suas mulheres por mancebas.

Isto urdia o demônio, para que se travasse guerra e desta maneira se impedisse a cristandade; mas o padre não supôs nada disto até estar no Rio Real, onde vendo as mulheres que pouco antes havia casado perguntou: que é de vossos maridos? Responderam chorando estas índias: mataram. Estavam ali alguns principais e disse o padre: enfim que matastes seus filhos e os comestes e sabendo que eu vinha ensinar-lhes coisas da nossa salvação.

Os que não tinham culpa, escusavam-se, mas o padre dissimulou o melhor que pode, dizendo que nem aquilo havia de ser bastante para deixá-los, tomou as mulheres aos índios que os tinham e deu cuidado delas a um índio de Santo Antonio e desta maneira ficou o demônio frustrado em que desejava. Outro meio foi pelos próprios índios escravos daquela aldeia, por um deles começou a pregar que os nossos tinham por costume ajuntar os índios, fazer-lhes alegria e depois cativá-los e entregá-los aos brancos. Outro escravo que fugiu dos brancos, foi lhes dar as mesmas novas, dizendo que bem os haviam dito e que não se fiassem nos brancos e que havia já chegado um barco com artilharia para seu senhor, e o mandou que o ajudasse a atirar, mas eu não quis, disse ele, e assim breve vereis como dão em nós e sereis todos presos e cativos.

Acrescentou-se a isto que uma índia, estando os índios bebendo, que é o tempo em que ela consultou suas guerras, ouviu os dizer. Se os brancos não derem guerra, mataremos nós outros primeiros e fez-se a um índio principal que morava com o padre, e disse-lhe; os índios estão em concerto de matá-los esta noite, e o Curubi entra neste eleito.

Deu logo conta disto ao padre e ao que os índios com as más novas estavam não com medo dos brancos, quase todos prontos em armas, e alguns moços discutiram depois que tinham isto determinado entre si que se os brancos viessem sobre eles, que se haviam de meter todos em a igreja e dizer-lhes: não nos cativeis, porque já somos filhos de Deus e temos igreja; mas não era menor o medo que tinham os nossos especialmente dos outros brancos, que estavam na companhia do padre, porque diziam estar desapercebidos, porque não sabemos o que ha de acontecer; um deles fugiu aquela noite, com medo e foi dar rebate ao capitão que estava seis léguas dali, dizendo que os índios estavam levantados e queriam matar os padres e como em estas novas comumente se acrescenta, logo nos vem recado desta cidade que os padres dão já em corda para comê-los e toda cidade estava alvoroçada com isto, mas em breve tempo se soube a verdade.

O padre como viu os índios com aqueles medos e enganados com mentiras, chamou os principais e disse-lhes: esta fama aí, que nos quereis matar si isto é assim, seja esta noite, antes da manhã; isto é o que desejamos, para isso viemos e eles então descobriram a verdade: que aqueles escravos lhes haviam dado aquelas más novas, mas que não tinham propósito de fazer mal a ninguém que bem sabiam que eram mentiras e com isto se despediram do padre. Mas aquela noite foi muito trabalhosa, assim para os índios, como para os brancos pelo medo que todos tinham da morte.

Quando o branco fugiu, acrescentaram também que o padre tinha fugido; algumas gentes suas devotas ajuntaram-se muito sentidas a consultar o que havia. Uns diziam: vamos em sua busca, não o deixemos ir.

O principal desta aldeia chamado Pepita disse a sua mulher: Si o padre fugiu tomemos nossas redes e vamos com ele. Outros vieram a noite ver si os padres estavam em as redes e quando os viram ficaram muito alegres. Outros diziam: durmamos junto dos padres, si alguns os vierem matar morreremos também com eles. Também desta vez ficou o demônio burlado, porque os índios ficaram mais confirmados na paz, e entenderam que o que o padre pregava era verdade e o que os escravos diziam era mentira.

O posterior meio que tomou o demônio para impedir esta obra, foi não menos eficaz que os passados, e nasceu dos próprios brancos que o padre levou em a sua companhia e aqui já o tinha feito muito boas obras porque como estas comunmente diziam, mas os gentios ver os escravos que... e isto pretendem quando vem entre eles remediar sua pobreza ao em que perdem suas almas e como os padres, onde quer que estejam sempre os vão... aos saltos que fazem... fá-los resgates injustos, enganando os índios, fazendo-os vender seus filhos e parentes e como também os estorvam os pecados que entre eles fazem, como é tomar-lhes suas mulheres e filhas por mancebas, esta foi a ocasião para dirigir e escrever ao Governador muitas coisas contra os padres, que não cabiam neles, e eles mesmos diziam: vós outros sois causa, porque nós outros somos pobres. Deu-se a isto tanto crédito que não faltou quem dissesse que enviasse logo a chamar o padre Gaspar Lourenço, porque havia coisas porcas que ele merecia ser cozido em uma caldeira. Eu entendo esta manhã que o demônio não desejava outra cousa senão ver os padres fora.

Dissimulei o melhor que pude, dizendo que costumava sempre dar uma orelha aos padres, que eu havia de enviar prestes o padre Luiz da Grã (††) para ajudar aquela cristandade e assim me informaria da verdade e assim foi, porque o padre depois que foi visitar aquelas partes me escreveu estas palavras: todos certificam o contrário do que se escreveu do Padre Gaspar Lourenço e assim pela bondade de Nosso Senhor nada aproveitaram aos demônios as invenções que buscam para impedir a cristandade e em que nunca cessa de buscar ardis, como aconteceu agora, que escreveram os mesmos à câmara desta cidade muitas cartas, dizendo que os padres eram impedimento, que os escravos não voltassem aos seus senhores e assim veio a câmara com todos seus oficiais a dar-me queixas deles, dizendo-me que os padres impediam as coisas do serviço de Deus, que pusesse remédio a isto. E deram a entender que dariam guerra aquela terra, e que ia por os padres em perigo de vida; mas claramente mostrei-lhes que o haviam escrito era falso. Mas com tudo isto como a obra é de Deus, confiança tínhamos que nos defendesse. E no tempo em que o padre residiu nesta aldeia, se fizeram algumas procissões solenes, enramando a igreja e as casas, e algumas vezes tinham disciplina todos os cristãos, por bom espaço pela conservação dos gentios. Em uma procissão, vendo um gentio que iam os círios diante da cruz, foi correndo a sua casa e achou uma candeia, e acendeu-a, e pôs-se também junto da cruz, em que mostrava sua simplicidade; outros índios estando na igreja e vendo a imagem do crucifixo estiveram muito tempo de joelhos vendo-a, e um índio desta aldeia os ensinava o que sabia e entendia.

Depois de haver o padre convertido a aldeia de S. Thomé e a gente pacifica, passou a visitar as aldeias comarcãs, onde há tanto tempo havia que o desejavam; passaram em estes caminhos grandes trabalhos, por ser por montanhas em terras muito fragosas. Passaram por algumas partes que as ervas os cortavam as pernas, e não podiam andar calçados por haver muitas águas e atoleiros.

Acontecia-lhes ir mais de meia légua por um arroio que os dava a água, as vezes do joelho, acrescentava-se a isto a falta de mantimentos especialmente que a quaresma os obrigava a jejuar, a comida não era mais que bananas e farinha molhada em água, pimenta, e por fruta tinham alguns caranguejos que os índios traziam seis léguas dali.

Foi esta partida mui contra a vontade dos índios desta aldeia, e com grande sentimento, todos a uma boca diziam e pregavam pela aldeia: vai o padre morrer, preparemo-nos para vingar a morte; isto diziam pelo temor que tinham de Surubi, mas o padre confiando na graça de Deus começou seu caminho sem querer levar ninguém da aldeia, senão só seu companheiro, o que foi maior espanto.

A primeira aldeia onde entrou foi a do Surubi que está dez ou doze léguas de S. Thomé, por mui ruim caminho; foram mui bem recebidos e apresentados em a casa do Surubi e os padres estiveram um grande espaço em pé diante ele, que estava deitado em sua rede sem falar-lhes uma só palavra.

E até que depois mandou os dessem alguma coisa para comer e foram quatro espigas de milho; parece que aguardava que o padre começasse a prática, e os ajuntasse a todos que lhes desse razão de sua vinda, a que fez o padre; depois, começou pela manhã a pregar-lhes as coisas de sua salvação; e como vinha a dar remédio as suas almas e acabou depois do meio dia. Ficaram contentes e todos a uma vez, disseram que folgavam muito com sua vinda e que queriam igreja. E assim logo ao outro dia começaram a cortar madeira para ela, e os mais honrados eram os primeiros a carregá-la a trazê-la às costas até o mesmo Surubi e assim em breve tempo a acabaram, porque a cobertura era de palha que há muito por aquelas partes e é a da invocação do glorioso S. Ignácio.

Tinha aquela aldeia mais de mil almas; enquanto não tinham a igreja, se os ensinavam a doutrina em a casa e acudiam a ela grandes e pequenos de muito grande vontade e como não tinham costume de ver brancos em suas aldeias estavam todos atônitos em vê-los, se fora coisa vinda do céu e quando saíam de casa, todos como saíam as casas para vê-los, grandes e alguns pequenos perguntavam se os padres era gente com quem se podia conversar e habitar.

Para confirmar-se mais o Surubi nas pazes, enviou um irmão seu com alguns índios para ver governador e nossas igrejas; foram bem recebidos e o governador os mandou dar de vestir e algumas ferramentas. Foram todos mui contentes, vendo o conceito que tinham os cristãos de nossas aldeias. Depois de deixar o padre quietos e animados os desta aldeia de S. Ignácio, passou a visitar as demais aldeias, bem contra vontade de Surubi, porque dizia ao padre: antes que nos fartes nos deixa! mais tempo estiveste na aldeia de S. Thomé de que na minha; mas o padre consolou-os, dizendo que também era necessário dar as boas novas do Evangelho as outras gentes. Ao segundo dia da jornada encontraram com uns principais, que os vinham esperar ao caminho, abrindo-lhes os caminhos por onde haviam de passar, porque todos estavam cerrados com as árvores. Foi grande a alegria que tiveram em este encontro, assim os nossos, como os índios e logo repartiram com o padre o que traziam, com caridade e fizeram uma choça em que repousaram esta noite e depois foram a sua aldeia onde foram recebidos de toda gente com tão grandes mostras de amor, como se fora muito tempo que os conversaram; e aí esteve o padre alguns dias ensinando-lhes as coisas de sua salvação. Daí passou a outras aldeias; em algumas foi mui bem recebido, em outras não os faziam bom rosto, temendo que os iam ajuntar para seu mal e assim diziam porque estavam muito escandalizados dos tempos passados, em que os brancos os tinham feito grandes danos.

Uns se queixavam que os haviam tomado suas mulheres, outros seus filhos; o padre respondia que ao passado não sabiam dar remédio, que também eles tinham morto muitos brancos, mas que si eles queriam ser cristãos e amigos dos brancos que tivessem por certo que não seriam agravados.

O primeiro que fazia em entrando em uma aldeia, era visitar si havia alguns enfermos em extrema necessidade, pregando-lhes o padre a virtude do santo batismo e as penas do inferno, que estão guardadas para os não batizados, expurgando-os de seus feiticeiros; claramente respondiam, não queriam ser batizados, que não temiam o fogo do inferno. Então tomou o padre um tição e o pôs junto do enfermo, dizendo: não temos arder com este fogo? mas nem isto bastou!

Assim morreram, parece que já ao demônio estavam entregues aquelas almas, mas o padre ficou com muita dor de ver sua perdição.

Em uma aldeia um principal estrangeiro começou a falar contra os padres, dizendo que os havia de quebrar a cabeça, que não tinha que ver com os brancos. Alguns dos índios que iam com os padres estavam atemorizados. O padre falou com o senhor da aldeia e perguntou-lhe se estavam ali seguros, respondeu-lhe: bem podeis dormir com sono de pousado, que não haverá em minha aldeia quem se atreva a fazer-te mal e pois entrastes em minha casa; onde morreres tu, eu morrerei com a minha gente; folgo muito de ver-te, porque há muito tempo te conheço por fama e que não dizias senão muito bem.

Outro dia mandou Deus o coração ao outro principal e foi a visitar os padres e deu mostras que o prezava do que tinha dito e pedia ao padre que fosse também à sua aldeia, mas os índios os aconselharam que não se fiasse nele.

Desejando o padre ir visitar outra aldeia que é postera de todas, em busca de um principal, que tinha prometido de vir à igreja de S. Thomé, mas o demônio o tinha já outra vez pervertido e estava com mais desejo de comer o padre, do que de se fazer cristão; mas foi N. S. servido de dar aviso ao padre disto e foi desta maneira: um índio daquela aldeia enviou um filho seu ao padre mui depressa, já de noite, dizendo que de nenhuma maneira entrasse na aldeia, porque o principal estava determinado de quebrar-lhe a cabeça, e que para isso tinha já se reunido com ele, e o padre ainda que quisesse com tudo isto passar, os índios não só o consentiriam, mas antes de algumas aldeias comarcãs veriam alguns para defender o padre e tudo foi necessário porque haviam já enviado índios a tomar-Ihes os caminhos, mas seguramente os passaram livrando-os Deus de todos os perigos e dando a volta para a aldeia de S. Ignácio trouxeram gente de duas ou três aldeias, para ajuntá-los em uma igreja junto do mar, e assim o fizeram com muita alegria dos índios e logo levantaram uma cruz e fizeram uma igreja da invocação de S. Paulo, porque chegaram véspera de S. Pedro e S. Paulo, e o dia disseram missa e ensinaram a doutrina e pregaram.

Ficaram os índios muito consolados e fazendo já as casas para sua habitação; mas como era necessário acudir o padre as outras aldeias, estava pouco tempo com eles, que causou neles não pouca tristeza; mas o padre consolou-os, dizendo que procurava acudir a todas as partes e assim resolve a visitar as outras igrejas, e foi recebido de todos com grande caridade e alguns pediram o santo batismo...

Na aldeia de S. Thomé batizaram outra índia, estando já a morrer, e assim que quando o padre lhe falava, mostrava pouca vontade disto, parecendo-lhe que só se batizasse logo havia de morrer que lhes ensinava o demônio, porque como os padres agora não batizavam senão aos que estavam á morte, pareceu-lhe que em batizando-se logo havia de morrer. Mas outro dia visitando-a ele padre e dizendo-lhe que se não queria o inferno era necessário batizar-se, ela disse que o desejava muito, que o dia antes quando soltou algumas palavras foi porque não estava em seu entendimento e assim depois de bem instruída, a batizou o padre e assim daí a três dias foi gozar de seu criador e enterraram-na na porta da igreja com a solenidade que se costuma em nestas aldeias e ficaram todos admirados de vê-lo. Vieram alguns índios de outras aldeias a falar com o padre e a pedir-lhe para fazer-lhes igrejas em suas terras, especialmente um, que antes havia ameaçado os padres, veio tão manso como um cordeiro, dizendo que só o padre era seu irmão e o padre perguntou-lhe qual era sua determinação e ele respondeu-lhe que era coisa tão importante, que não era bom determinar-lhe de baixo de casa alheia, que fosse a sua aldeia que se lhe diria. Prometeu-lhe o padre de ir a ela e assim o fez daí a poucos dias. Estava três léguas de S. Thomé, foram de todos recebidos com grande louvor e depois de haver o padre falado, responderam que faziam o que ele quisesse e que passariam a aldeias onde o senhor (?) mandasse e assim a passaram junto do mar para poder ser melhor visitada. Daí foi o padre onde estava o capitão a confessar alguns homens brancos onde também se fez muito serviço a Deus apartando-os de muitos pecados e fazendo-os pedir perdão do escândalo que o haviam dado.

Vendo como nosso senhor punha os olhos na gente de Marial pareceu necessário prover de mais obreiros e pelo padre Luiz da Grã que tinha muita experiência na conversão destes índios e ser de todos muito conhecido e amado, pareceu serviço de Deus pôr-lhe nas mãos esta empresa, a qual aceitou com grande caridade e desejos de padecer muitos trabalhos por amor de Deus e assim foi por este caminho obra de quarenta a cinquenta léguas, levando por companheiro o irmão Francisco Pinto, língua, e como ser já o padre velho de mais de cinquenta anos, sempre foi a pé e muitas vezes descalço pelo caminho. Não sofrer outra coisa e senão que um homem honrado que ia em sua companhia lhe oferecia sua cavalgadura de muito boa vontade nunca quis aceitar. Escusava, dizendo que ia em peregrinação a S. Ignácio. Mas dava-lhe também esforço que no caminho passando pelos trabalhos, parecia um mancebo de vinte anos.

Sabendo que os índios da aldeia de S. Thomé, que ia o padre visitá-los, saiu muita gente ao caminho a recebê-lo, levando algum refresco, conforme sua pobreza, para que os que iam em sua companhia tinham a casa onde haviam de passar, enramada e com alguns arcos, e a alegria que o padre Gaspar Lourenço e seu companheiro foi mui grande, porque viam já com seus olhos o que desejavam. Entraram todos com o padre na igreja e animando-os a perseverar no bem começado. Logo trouxeram ali todas suas... e a um que era coisa pouca, a caridade com que trazia era muito. Vieram também logo das outras aldeias comarcãs a visitar o padre dizendo que se queriam ajuntar e ter igrejas, a todos consolou o padre, dando-lhes esperança que os iria visitar prestes e assim me escreveu, que todos daquela comarca se resolvem a fazer igrejas. Deus por sua infinita bondade os dê perseverança no bem começado e mande obreiros para tanta messe. Isto é o que até aqui aconteceu no rio Real.

Neste colégio da Bahia, 7 de setembro de 1575.

Indigno filho de V. P.

Ignácio Toloza.

 

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Notas:

* Vossa Paternidade.

 

** Relativas à comarca em que estavam. No livro de Freire (1891) a grafia é comarcans. A edição de 1977 registra erroneamente comareans. Não confundir com camacãs, um grupo indígena que habitava o sul da Bahia e outras regiões do Brasil.

 

*** Ser um língua, nesse contexto, significava conhecer bem a língua dos indígenas.

 

Em 1572, o Brasil foi dividido, ficando o setor norte, com capital em Salvador, governado por Luiz de Brito. Em 1578, o Brasil foi reunificado.

 

†† O jesuíta Luiz da Grã chegou ao Brasil, em 1553, junto com Anchieta, teve participação importante nas missões indígenas. Foi reitor do Colégio dos Jesuítas da Bahia e colaborou com o Tribunal do Santo Ofício, no Brasil, a Inquisição.

 

Padre Inácio de Toloza

Inácio de Toloza nasceu em Medinaceli, em 1533, na Espanha. Morou em Lisboa e entrou para a Companhia de Jesus, em 1560. Doutorou-se na Universidade de Évora, lecionou em Coimbra e no Colégio de Braga, em 1568.

Embarcou para o Brasil em 13 de janeiro de 1572. Em 23 de abril seguinte, assumiu o governo da província da Companhia de Jesus, na Bahia, ficando no cargo até 1577. Foi sucedido pelo padre José de Anchieta.

Em 1575, enviou os padres Gaspar Lourenço e João Solonio para fundar as missões de Sergipe. De 1583 a 1591 governou o Colégio do Rio de Janeiro. De 1592 a 1598, foi reitor do Colégio da Bahia, onde faleceu em 22 de setembro de 1611.

 

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Por Jonildo Bacelar